Era um Natal carregado de humidade com uma névoa engrossada, quase chuva, mas de temperatura amena. Já tudo recolhera a suas casas e os retardatários para a ceia lá de casa tinham chegado. Procurava em vão uma última taberna onde pudesse comprar tabaco. No início da calçada estava parado um cachorrito preto, de pelo liso, meio molhado, que me interpelou sobre qualquer coisa inclinando a cabeça o espevitar das orelhas e um abanar do rabo. Dei-lhe apoio moral com um toque suave na cabeça que agradeceu, trocamos um olhar, e lá ficou como que á espera de alguém que lhe desse outra resposta que não aquela. O nevoeiro era agora chuva muito fina. A última tentativa que tinha para encontrar tabaco era nos cafés do centro do bairro, no jardim público. A rua era comprida e pouco iluminada por candeeiros antigos, iguais àqueles que se furtavam ao João Villaret, no tal filme já mil vezes visto. Das janelas das casas vinha uma claridade que ajudava a marcar alguns espaços iluminados na rua e as pedras borrifadas pela grande humidade reflectiam esses escassos pontos de luz. Já caminhava há algum tempo quando ao atravessar a rua olhei para trás e reparei na silhueta do cachorrito reflectida nas pedras de basalto preto gastas pelo tempo, já quase seixos redondos. Aquele pobre tinha-me seguido até ali durante todo aquele tempo. Aproximei-me dele. Das casas ouvia-se o som abafado do Twelve days of Christmas de Harry Belafonte. Desta vez não me interpelou, baixou a cabeça, julgo que num sinal de submissão. O pelo lustroso e limpo estava a ceder e começava a ficar encharcado. Voltei a fazer-lhe uma festa, agora com a palma da mão e disse-lhe mentalmente que não o podia levar. Parece ter confirmado no gesto aquilo que já sabia, e lá ficou parado.
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No regresso, sem o tabaco que não consegui comprar e já molhado, ia decidido a dar-lhe uma outra consoada, mas a última conversa parece ter sido para ele decisiva. Deve ter continuado a sua busca por um coração mais mole naquela noite.
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Não fosse a solidez das minhas convicções e perguntaria: Quem seria aquele cão que me pôs á prova e ainda hoje passados tantos anos me aparece sempre nas minhas memórias de Natal?
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Se ele voltar algum dia, juro que terá um Natal seco e farto.
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