Quando no final do ano passado os inquilinos se viram confrontados com a forma e o conteúdo da previsivel alteração aos seus contratos de arrendamento, uma grande maioria não teve capacidade de reacção ao problema, por diversas razões.
Desde logo, porque a questão foi ardilozamente subtraída ao debate sério na Assembleia da República, através do artifício da Autorização Legislativa, introduzida no pacote da aprovação do Orçamento.
Depois, porque a alteração atingia uma faixa etária já sem grandes capacidades reivindicativas.
E ainda (e pasme-se) porque muita gente não acreditava que fossem possíveis os cenários que então se configuravam, ou que a lei conseguisse passar nos crivos da nossa democracia
Foram então uns quantos mais atentos que se movimentaram e entre reuniões e debates formaram-se alguns grupos de reflexão que foram pressionando a oposição por forma a representá-los nesse protesto. Muitos textos foram escritos mas a força deste movimento não tem os lobbies por trás a apoiá-los e tanta coisa ficou na gaveta sem possibilidade de vir à luz do conhecimento.
É o caso do texto que decidi publicar que também só agora vi e dada a sua condição estruturante, em relação não só ao arrendamento como à habitação, aqui vai, basta retirar-lhe algumas referencias temporais e ele fica novamente actual.
Em tudo o problema subsiste e as soluções não podem nem devem ser muito diferentes do que nos diz: MDV.
NOVA LEI DO ARRENDAMENTO
MAIS UMA TACADA NA CLASSE MÉDIA
PARTE I
Pequena nota preliminar para os distraídos: O DESCONGELAMENTO DAS RENDAS HABITACIONAIS OCORREU EM 1981... HÁ 23 ANOS, portanto.
O anúncio da aprovação em Conselho de Ministros duma nova lei para o arrendamento urbano, é anunciada duma forma que procura iludir os efeitos efectivos que irá trazer, caso venha a ser implementada tal como é apresentada. Isto é, as declarações do Primeiro Ministro e do Ministro das Cidades, centram-se na meritória atenção que vão dedicar aos mais idosos e mais carenciados e fundamentam-na como “um factor indutor do crescimento da economia”: “Todos sairão beneficiados” afirma-se.
Será assim?
Em Agosto passado, mais um prédio derrocou em Lisboa deixando sem tecto algumas famílias que aí habitavam, pagando rendas de vinte e mais contos por mês, bastante acima dos valores que são atirados, para a comunicação social, como sendo os correntes. Ocasião muito bem aproveitada para mais uma campanha contra o “congelamento” de rendas e pró a anunciada nova Lei do arrendamento. Claro que tudo em nome da justiça mas, sobretudo, contra a degradação do edificado. Agora também, como um santo milagreiro para “aumentar a receita fiscal com novas rendas”!
A televisão repetiu à saciedade uma mesma reportagem em que o Pres. da Assoc. Lisbonense de Proprietários (ALP) verberava contra uma situação em que havia rendas de 1 euro (pasme-se...que proprietários mais estúpidos que não aproveitam da Lei que têm a seu favor!) e, a filmagem de vários prédios em que o mesmo quadro se repetia:
um prédio decrépito, maioritariamente desocupado, em que sobrevivia apenas um inquilino que, entrevistado, se queixava do perigo em que estava e das obras urgentes que o senhorio não fazia, numa casa pela qual pagava a renda x - bem acima do euro da ALP; certamente bem pesada para o seu magro orçamento.
A Assoc. de Inquilinos foi esquecida.
Mensagem subjacente à reportagem: “como é que o pobre do senhorio póde fazer obras com rendas destas?”
Espantoso como ao jornalista não ocorreu questionar o senhorio pela situação de ruína e risco existente e, porque não recuperava o edifício como a Lei determina (Art.s 9º e 10º do RGEU – Regulamento Geral das Edificações Urbanas) o que lhe permitiria, simultaneamente, arrendar ou vender a bom preço os vários fogos desocupados?
Isto é, o senhorio à semelhança de muitos proprietários deste país (na agricultura, no comércio, na indústria, no imobiliário) não rentabiliza os bens que tem, não investe um cêntimo e lamenta-se achando que a sociedade, com a conivência do(s) Governo(s), deve uma protecção ilimitada aos seus interesses.
O culpado da sua desgraça é, na reportagem, o único que ainda lhe paga qualquer coisa – o inquilino. Estranha conclusão!
O DESCONGELAMENTO DAS RENDAS OCORREU EM 1981 para os contratos a celebrar futuramente, portanto há 23 anos. Em 1986, torna-se extensivo aos contratos anteriores.
Na altura foi feita uma correcção extraordinária em que o valor a pagar triplicou ou quadriplicou e, a partir daí todos os anos é feita uma actualização baseada na inflacção. Para além desta legislação, várias outras foram sendo aprovadas antes e depois mas, sempre ampliando os direitos dos senhorios e consequentemente retirando-os aos inquilinos. Nomeadamente, aos senhorios nunca foi exigido que cumprissem a parte que lhes competia – fazer as obras de conservação que a Lei determina – apesar de terem sido criados vários programas de apoio para esse fim.
No entanto, o direito fundamental de manutenção na habitação que um contrato firmado entre as duas partes garantia, nunca foi posto em dúvida. Porque, apenas, os contratos que viessem a ser celebrados a partir de 1990, passariam a ser de renda livre negociada entre senhorio e inquilino por um prazo mínimo de 5 anos. Quem arrenda uma casa a partir de então, para além de uma renda exorbitante que vai pagar, fica sujeito a poder aí permanecer apenas por cinco anos. Tudo para incentivar o mercado do arrendamento, diz-se!
Em Setembro de 2001, a então Secretária de Estado da Habitação Leonor Coutinho, publicou um estudo fundamentado em dados e num inquérito à habitação da responsabilidade do INE, donde retiro os elementos que se seguem.
De um universo de 3.290.684 fogos existentes em Portugal à data, 64% correspondia a casa própria e 36% a arrendamento, cedência gratuita ou subarrendamento; ou visto de outra forma, 35% eram casas novas adquiridas pelos actuais proprietários, 17% casas com alguns anos de uso adquiridas recentemente, 28% estavam alugadas.
Nas últimas três décadas o número de fogos tinha triplicado em Portugal – cerca de 2 milhões de fogos.
A partir de meados da década de oitenta é exponencial a construção destinada à habitação (1986 – 50.000 fogos ano; início dos anos noventa – 60.000; a partir de 1995 – acima dos 65.000; 1998 – 89.270; 1999 – 101.428...).
A construção nova representa mais de 80% das licenças concedidas.
Os licenciamentos relativos a novas habitações em Portugal representavam 30,3% para um média europeia de 22,6%; contrariamente, para reabilitação as percentagens eram de 4% para 33,3%, respectivamente .
Perto de 65% das famílias viviam em casa própria; enquanto, dessas apenas 20% mantinha encargos com a compra da casa.
Só 14% dos prédios construídos (incluído o PER – Plano Especial de Realojamento) se destinavam a arrendamento.
Na década de 90, cerca de ¼ das famílias portuguesas mudaram de casa através de compra ou aluguer.
Os apoios concedidos pelo Estado à melhoria das condições de habitação, destinavam-se:
79% à compra de habitação (bonificações e dedução no IRS)
15% construção para aluguer a famílias de fracos recursos (PER)
8% para incentivo ao mercado privado de arrendamento através da reabilitação de edifícios, da recuperação de núcleos urbanos antigos e incentivo ao arrendamento jovem. (RECRIA; REHABITA; RECRIPH; SOLARH e IAJ - Incentivo ao Arrendamento Jovem).
O Secretário de Estado do Ordenamento do Território de então, defendeu num Colóquio realizado em Coimbra que “se constroi de mais” e “Temos assistido a um crescimento verdadeiramente absurdo das áreas urbanas e urbanizáveis dos municípios, mesmo ao abrigo dos planos municipais de ordenamento do território. Um crescimento que, como é reconhecido, excede largamente as necessidades do país, até porque se desenvolve no sentido inverso da evolução demográfica”.
POLÍTICAS
Pois bem, do diagnóstico feito através destas reflexões e do Estudo que honra a excelente Técnica a que normalmente é associada aquela Secretária de Estado, resultou uma legislação exemplar das contradições na actuação do PS:
O DL 329/2000, anunciado como a fórmula mágica para a “recuperação do património, para devolver a vida às cidades, para combater a degradação das zonas antigas das cidades, o abandono dos centros históricos”...possibilita ao senhorio o reembolso do custo das obras, que devia ter feito e não fez (obras de conservação ordinária), no prazo máximo de oito anos, a somar às de conservação extraordinária e de beneficiação que a legislação de 1990 já incorporava na renda.
Alguém deu pelos efeitos desta Lei? Claro que não:
os senhorios com contratos mais antigos, cada vez em menor número, mantêm a sua inércia e as suas lamentações;
os novos senhorios não se contentam com migalhas. Querem negócios chorudos e manter a situação até dá geito – o culpado está identificado o congelamento das rendas, entretanto, os inquilinos vão morrendo, os prédios vão caindo e ficam livres para construir de novo; (quando o prédio cai, cessam todas as obrigações do senhorio), ou sendo recuperados para quem os possa pagar bem;
os inquilinos não se sentem estimulados a exigir obras que terão de pagar.
Não conheço estudos mais recentes mas, atrevo-me a considerar que a situação descrita se se alterou foi para se acentuar.
O QUE SE ANUNCIA
Em vários artigos publicados recentemente no PÚBLICO, sempre por Luísa Pinto, lê-se que “Portugal é o país da Europa Ocidental que menos investe em reabilitação de edifícios e o que mais gasta na construção de novos prédios, segundo um estudo do Ministério das Obras Públicas, Transportes e Habitação publicado em Janeiro de 2004”.
No prefácio assinado pelo Ministro, actual Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, referindo-se ao reduzido investimento em reabilitação urbana afirma que “consubstancia antes de mais um desaproveitamento grave dos recursos existentes, além de todas as consequências nefastas de ordem social e urbanística” (LOCAL de 5 de Agosto de 2004)
Nas páginas de ECONOMIA, lê-se que “Portugal é um dos países da UE onde o investimento no mercado imobiliário traz maior retorno.” “O índice IPD Portugal/Imométrica, que coloca Portugal em terceiro lugar no “ranking” europeu da percentagem de retorno em investimento imobiliário, tem vindo a descer desde há três anos. Mesmo assim, e comparado com outros mercados de investimento onde pode ser analisada a percentagem de retorno, o imobiliário continua a ser a aposta mais vantajosa, sobretudo se analisado em termos de médio prazo e a três anos” “...o imobiliário rende 12,2%”.
E ainda “A perspectiva veiculada por vários agentes do sector é a de que, em Portugal, a procura continua muito acima da oferta”. E adiante “O pontapé de saída foi dado com a publicação do diploma que cria as Sociedades de Reabilitação Urbana (SRU), dotadas de um regime excepcional que lhes permite avançar com expropriações. Mas continua a faltar um importante vértice: a reforma da Lei do Arrendamento, que deve ser conhecida em Setembro”.
Em 22 de Agosto último, num outro artigo intitulado Rendas antigas são bomba-relógio nos velhos centros urbanos, todo ele no sentido da apologia da “liberalização” pretendida, sempre vai dizendo que “enquanto as cidades se vão degradando, vai-se assistindo a outro fenómeno: a aquisição especulativa de edifícios degradados, assente na espectativa da ruína acelerada do prédio que possa permitir, depois, licenciamento de novas construções com maior número de fogos e consequente rentabilidade”. E num destaque de fim de página diz: ”No caso em que as rendas estão liberalizadas nota-se aumentos brutais: de acordo com um índice calculado com base numa amostra de 5700 habitações, as rendas nas casas novas registaram um aumento de 403 por cento desde 1985”.
Clarinho, não é?
Na semana seguinte, em artigo intitulado Nova lei das rendas pode excluir quase 40 por cento dos inquilinos (numa caixa) que diz que não diz as três fases que a reforma vai ter, entre outras ideias todas elas estimuladoras do arrendamento, até se aventa que “os contratos de arrendamento urbano passam de cinco para três anos”.
Que bom! Sem recursos para poder viajar, os agregados familiares sempre poderão mais cedo, conhecer outras paredes se não chegarem a acordo com o seu senhorio.
Em fins de Setembro, a comunicação social, transmitiu números assombrosos da celebração de recentes contratos de empréstimo para aquisição de casa própria, (parece que era um sintoma da retoma que já se faz sentir, segundo se afirmava). Ao mesmo tempo, somos bombardeados por todos os meios com a sistemática publicidade às vantagens e simplificação desses contratos.
No PÚBLICO de 24 e 26 desse mês lê-se que num mega-estudo sobre Lisboa, coordenado por João Seixas e uma parte do qual da responsabilidade de Augusto Mateus, foi divulgado que “na década de 90 o número de alojamentos vagos aumentou 60 por cento, percentagem que se eleva aos 72,4 por cento quando se fala dos alojamentos vagos que nessa altura se encontravam fora do mercado de venda ou aluguer”. Isto significa 70.000 fogos vagos quando, no Plano Estratégico de Lisboa, aprovado em finais de 1992 se estimava a existência de cerca de 31.000.
Texto de: MDV
Setembro de 2004
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