(Acabo de ver no Parlamento, Couto dos Santos, com uma tal vergonhosa cara de Touriga Nacional, tão alarvemente tinta, que não consigo esquecer os reflexos violáceos daquele riso provocatório e aparentemente avinhado, enquanto escrevo sobre a revolta de hoje, que não tem a ver com ele mas influencia sem que o queira).
Mais terrível do que o aumento do custo de vida que todos os dias nos é anunciado, é uma outra coisa bem mais grave que agora começa a aflorar e essa sim, vai gerar um terramoto social de consequências imprevisíveis.
É preciso dizer antes que somos um povo com capacidades de sofrimento que não nos enobrecem. Isto não é fácil de ler nem de escrever, mas é uma verdade histórica que nos persegue. Salazar sabia-o. Por muitas padeiras que a nossa ficção reinvente, a verdade é que aturámos aqui espanhóis durante décadas e os ingleses que nos salvaram dos franceses, submeteram-nos por um período tão vexatório que ainda hoje a nossa história o omite. É nos brandos costumes que temos que procurar essa dificuldade em reagir colectivamente, a mesma que inquina o nosso desenvolvimento.
A nova cruzada é agora o aproveitamento da crise para um processo maquiavélico de trituração das pessoas como antes não víamos e se colectivamente não nos opusermos, isso vai ser feito à escala de um grande descalabro. Os novos Liberais, estão a fazê-lo aproveitando o nosso medo, o medo que se instalou, o medo de perder o emprego, a pensão, a casa, a saúde, a educação dos filhos, resumindo, a vida segura como a conhecíamos. O paradoxo é que estes obreiros são curiosamente os representantes dos coveiros que aqui nos trouxeram, ou seja, geraram no seio deste sistema esta crise e dela se servem agora, para fazer o que nunca antes se atreveram, nem nós sonhávamos. Têm-nos reféns pelo medo porque sabem que é esse medo que nos impede de lhes entrar casa dentro por se recusarem a contribuir como nós para este esforço nacional. Ameaçam-nos: "Eles não podem ser incomodados, se não fogem!"
Quando, como hoje, está a ser anunciada a possibilidade de um patrão poder despedir se estiver de mau humor, mentindo com um contrato por objectivos, dando a empregadores sem escrúpulos o poder de criar sobre milhões de trabalhadores e as suas famílias uma instabilidade laboral, cujas consequências desconhecemos, diz bem do drama em que estamos metidos. A seguir, virá a nova lei dos despejos na habitação e por aí fora. Tudo em nome do sacro santo capital, e da subserviência aos mercados sem rosto que a política já não controla.
Quando se experimentam medidas cortando nas contribuições patronais para a Segurança Social, que é parte do fundo das nossas pensões - o suporte psicológico de quem vai deixar de trabalhar - potenciando assim o lucro das empresas julgando que elas vão a correr criar postos de trabalho, das duas uma, ou é intenção deliberada para arruinar o Estado Social que conquistamos, ou é ingenuidade pura. Qualquer uma das opções diz bem do drama em que estamos metidos.
A única coisa que temos que temer é o medo, e eles estão mais uma vez a jogar no nosso medo, mas isso, depende de aceitarmos as condições de humilhação que o neoliberalismo desregulador nos impõe, e que novos movimentos em formação começam a enfrentar. Acredito que essa história de resistência e contestação se fará também por cima dos caducos sectarismos vigentes, mas bem instalados, que nos espartilham entre as bíblias lambidas, embora saibamos que virão depois para a foto final.
(A mim, retirem-me o bom vinho de tostão que bebo com gosto, se algum dia me apresentar naquelas cores)
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