Colónia, … conjunto de individuos duma nacionalidade estabelecidos em país estrangeiro.
De um modo geral há a tendência para que saído da sua terra o colono queira ganhar raízes na terra que vai ocupar, tornando-o um individuo conservador e pouco crítico em relação aos valores de respeito pelos direitos naturais das populações autóctones.
Resposta ao comentário de aafonso.sousa em 06/09/06, na página Memórias de Telémaco A. Pissaro
Disse o Sousa: “…Essa burguesia colonial é, grosso modo, de origem popular. Foram emigrantes pobres que saindo do meio rural português, sem outra formação que não fosse o trabalho rural, encontraram nas colónias promoção social. Esta burguesia não conheceu verdadeiras relações de trabalho. Trabalho forçado — conhecido por «contrato» — e criados, foi tudo com que aprenderam a lidar. Nas colónias portuguesas — conheci bem o caso de Angola — a maior parte da mão-de-obra intensiva era recrutada compulsivamente por «contrato»…””… É este o paradigma das relações de trabalho que alguns ainda têm e outros deixaram em herança aos filhos e netos”.
Porque o que li neste comentário não foi nada daquilo que vivi entre 1955 e 1961, acho que devo deixar o meu testemunho, desapaixonado, porque me parece que a este tempo de distância já deveria haver mais debate do que discussão acalorada.
Cada um de nós verá sempre o problema em função dos prejuizos morais e materiais que teve. Ninguém apagará o rancor e a mágoa de alguém a quem arrancaram pedaços de si próprio através do desventramento sacrílego e desumano da familia e portanto, da sua vida. Mas também por muita simpatia que se tenha pela emancipação dos povos – e eu tenho – não podemos cair na apologia da barbárie que corre ao lado das guerras oficiais, como forma de conquistar direitos pelos quais se cometem crimes. Nestas questões traumáticas só o tempo e a história conseguirão fazer prevalecer a luz mais certa para observar os factos. Mas independentemente da afectação que cada um teve, é preciso procurar formas de leitura das suas vivências para construir o que mais se aproxime da realidade. Não vale a pena pegar a molho para dizer que a realidade foi exactamente aquela que se pretende demonstrar, quando diz por ex.: “...Trabalho forçado...e criados, foi tudo com que aprenderam a lidar”
Antes de abordar a minha experiência africana, não quero deixar de referir um texto que encontrei na net e que considero exemplar sobre o que foi a Colonização Portuguesa em termos agrícolas. Podem encontrá-lo aqui:
http://www.ipbeja.pt/pubol/Artigo.pdf, com destaque particular para a página 7 que é aquela que mais me diz respeito.
Em 1955, com a idade de 6 anos, saí do Alentejo com os pais, um irmão de 8 anos e um primo de 18. A família vendeu os activos de um pequeno negócio comercial e agricola e com uma pequena verba aventurou-se com um pequeno apoio logístico do governo para fixação numa aldeia de colonato. Fomos daqui com cerca de 30 famílias de Freixo-de-Espada-à-Cinta continuar o Colonato da Cela que tinha acabado de nascer. As famílias que foram comigo eram de facto pobres. Uma maior formação escolar do meu pai veio a determinar que fosse eleito à sua revelia, regedor da aldeia. Aquela era gente rude mas boa. Gente que lá porque caía em Àfrica não ía a pedido de uma qualquer alegação futura, desatar a virar-se do avesso só porque não estava em Trás-os-Montes. A tal promoção social, que diz o Afonso Sousa que encontraram, foi a do trabalho que nem mouros, porque a porra da terra e a forma como o colonato foi arquitectado não davam para mais nada.
Devo referir antes de continuar que fui encontar de facto populações nativas de uma humildade, respeito e reverência para connosco, verdadeiramente surpreendentes, pelo menos para mim. O seu respeito era tal que não se cruzavam comigo num caminho que não fosse numa posição de cedência de passagem reverencial, o que confesso, me criava embaraço.
A nossa exploração agricola foi inteiramente desenvolvida pela família, e em circunstâncias nenhumas foi admitida mão de obra nativa, a prova está no relato que ipbeja faz na sua página assinalada em cima:“…Não era autorizada a chamada utilização de”braço negro”, e quantas vezes ela era necessária…
Mais tarde, pela falência da experiência da colonização agrícola e depois de se ter gasto o pecúlio que se levou da Metrópole, não restou outra alternativa que não fosse mudar de vida. O pai, pela a sua formação escolar, arranjou trabalho adequado na Vila de Santa Comba. Aí, a situação mudou ligeiramente, porque na vila, fora do Colonato, já era permitido admitir empregados e recordo-me que se resistiu durante bastante tempo aos pedidos de emprego que todos os dias batiam à porta. Por fim, o meu pai cedeu e um moço três ou quarto anos mais velho que nós, ajudava em casa e acabava por brincar connosco a maior parte do tempo. A imagem de o ver subir às àrvores, pegar numa espécie de cigarra à qual tirava as asas, e meter boca abaixo, não me saía da cabeça à hora do jantar.
Até aqui a minha experiência africana passava em qualquer Tribunal dos Direitos do Homem. Ou não?
Luanda foi a próxima etapa da família. O pai consegue o emprego de encarregado geral numa empresa de amiantos e fibrocimento. Passei então a viver a 8 Km de Luanda na estrada do Cacuaco. Aquilo eram já instalações fabris de grande emprego de operários, maioritáriamente negros. Eram empregados normais que marcavam o ponto como aqui. Excepto quando recebíam a semanada, era um sarilho... eu ouvia o meu pai aflito porque a balda era geral, apareciam alguns dias mais tarde a dizer que tinha morrido o tio ou a prima, que já tinham “matado” no mês anterior. Mas não me recordo que isso despoletasse perseguições futuras. O meu pai era uma pessoa de que sempre me hei-de orgulhar. Quando saía das aulas do Liceu Salvador Correia de Sá, fazia a descompressão espreitando a laboração da fábrica até que uma estridente sirene mandava toda aquela gente para os balneáreos – os melhores que vi na época - de onde saíam todos a cheirar àquele sabonete de glicerina americano horrível, o Lifeboy. Dia sim dia não, o Matias, que era um venerável chefe de turno, homem muito calmo, vinha à nossa residência que ficava no perímetro da fábrica e aprendia aí com o meu irmão as primeiras letras e os primeiros números. Ía fazendo os seus progressos descontando a dificuldade de aprendizagem que era natural. Um dia, em Janeiro de 1961, deixou de vir. E nunca mais veio.
Até que veio o fatídico Fevereiro de 1961. O Matias, porque queria outra coisa para a sua terra, parece que engrossou as fileiras de um movimento de libertação. Não acredito que o Matias tenha pegado numa catana para esventar meninos, mas não lhe perdoo, em nome do tratamento exemplar que lhe demos que tenha deixado os seus amigos fazê-lo. Alguns dias depois, para nossa protecção, porque estávamos isolados, montámos guarda noturna, potentes alofotes nas cercas, metralhadoras FBP no quarto, dormida por turnos e uma viatura com chaves na ignição e portões abertos. A vida assim era complicada, percebemos que ainda que boa gente, eles não queriam que lá ficássemos. Lembro-me de me despedir do meu cãozito a chorar porque ele percebeu logo de manhã que alguma coisa de trágico ía acontecer na vida dele.
Meu caro Afonso Sousa, o mundo não é a preto e branco. Os valores por que pauto a minha vida encontro-os na vertente social dos partidos de esquerda, mas não é qualquer cartilha que me fará ter leituras a preto e branco do que se passou em Àfrica. Claro que houve erros, desde logo porque Àfrica já existia antes dos Europeus lá chegarem. E é aqui que começa o equívoco.
Permita-me que discorde profundamente de si é que pela memória da integridade e ética dos meus pais não poderia deixar de lhe dizer que eles nunca foram os burgueses malteses que o Afonso aqui trouxe e que não há revolução nenhuma que não plante também a sua burguesia.
De um modo geral há a tendência para que saído da sua terra o colono queira ganhar raízes na terra que vai ocupar, tornando-o um individuo conservador e pouco crítico em relação aos valores de respeito pelos direitos naturais das populações autóctones.
Resposta ao comentário de aafonso.sousa em 06/09/06, na página Memórias de Telémaco A. Pissaro
Disse o Sousa: “…Essa burguesia colonial é, grosso modo, de origem popular. Foram emigrantes pobres que saindo do meio rural português, sem outra formação que não fosse o trabalho rural, encontraram nas colónias promoção social. Esta burguesia não conheceu verdadeiras relações de trabalho. Trabalho forçado — conhecido por «contrato» — e criados, foi tudo com que aprenderam a lidar. Nas colónias portuguesas — conheci bem o caso de Angola — a maior parte da mão-de-obra intensiva era recrutada compulsivamente por «contrato»…””… É este o paradigma das relações de trabalho que alguns ainda têm e outros deixaram em herança aos filhos e netos”.
Porque o que li neste comentário não foi nada daquilo que vivi entre 1955 e 1961, acho que devo deixar o meu testemunho, desapaixonado, porque me parece que a este tempo de distância já deveria haver mais debate do que discussão acalorada.
Cada um de nós verá sempre o problema em função dos prejuizos morais e materiais que teve. Ninguém apagará o rancor e a mágoa de alguém a quem arrancaram pedaços de si próprio através do desventramento sacrílego e desumano da familia e portanto, da sua vida. Mas também por muita simpatia que se tenha pela emancipação dos povos – e eu tenho – não podemos cair na apologia da barbárie que corre ao lado das guerras oficiais, como forma de conquistar direitos pelos quais se cometem crimes. Nestas questões traumáticas só o tempo e a história conseguirão fazer prevalecer a luz mais certa para observar os factos. Mas independentemente da afectação que cada um teve, é preciso procurar formas de leitura das suas vivências para construir o que mais se aproxime da realidade. Não vale a pena pegar a molho para dizer que a realidade foi exactamente aquela que se pretende demonstrar, quando diz por ex.: “...Trabalho forçado...e criados, foi tudo com que aprenderam a lidar”
Antes de abordar a minha experiência africana, não quero deixar de referir um texto que encontrei na net e que considero exemplar sobre o que foi a Colonização Portuguesa em termos agrícolas. Podem encontrá-lo aqui:
http://www.ipbeja.pt/pubol/Artigo.pdf, com destaque particular para a página 7 que é aquela que mais me diz respeito.
Em 1955, com a idade de 6 anos, saí do Alentejo com os pais, um irmão de 8 anos e um primo de 18. A família vendeu os activos de um pequeno negócio comercial e agricola e com uma pequena verba aventurou-se com um pequeno apoio logístico do governo para fixação numa aldeia de colonato. Fomos daqui com cerca de 30 famílias de Freixo-de-Espada-à-Cinta continuar o Colonato da Cela que tinha acabado de nascer. As famílias que foram comigo eram de facto pobres. Uma maior formação escolar do meu pai veio a determinar que fosse eleito à sua revelia, regedor da aldeia. Aquela era gente rude mas boa. Gente que lá porque caía em Àfrica não ía a pedido de uma qualquer alegação futura, desatar a virar-se do avesso só porque não estava em Trás-os-Montes. A tal promoção social, que diz o Afonso Sousa que encontraram, foi a do trabalho que nem mouros, porque a porra da terra e a forma como o colonato foi arquitectado não davam para mais nada.
Devo referir antes de continuar que fui encontar de facto populações nativas de uma humildade, respeito e reverência para connosco, verdadeiramente surpreendentes, pelo menos para mim. O seu respeito era tal que não se cruzavam comigo num caminho que não fosse numa posição de cedência de passagem reverencial, o que confesso, me criava embaraço.
A nossa exploração agricola foi inteiramente desenvolvida pela família, e em circunstâncias nenhumas foi admitida mão de obra nativa, a prova está no relato que ipbeja faz na sua página assinalada em cima:“…Não era autorizada a chamada utilização de”braço negro”, e quantas vezes ela era necessária…
Mais tarde, pela falência da experiência da colonização agrícola e depois de se ter gasto o pecúlio que se levou da Metrópole, não restou outra alternativa que não fosse mudar de vida. O pai, pela a sua formação escolar, arranjou trabalho adequado na Vila de Santa Comba. Aí, a situação mudou ligeiramente, porque na vila, fora do Colonato, já era permitido admitir empregados e recordo-me que se resistiu durante bastante tempo aos pedidos de emprego que todos os dias batiam à porta. Por fim, o meu pai cedeu e um moço três ou quarto anos mais velho que nós, ajudava em casa e acabava por brincar connosco a maior parte do tempo. A imagem de o ver subir às àrvores, pegar numa espécie de cigarra à qual tirava as asas, e meter boca abaixo, não me saía da cabeça à hora do jantar.
Até aqui a minha experiência africana passava em qualquer Tribunal dos Direitos do Homem. Ou não?
Luanda foi a próxima etapa da família. O pai consegue o emprego de encarregado geral numa empresa de amiantos e fibrocimento. Passei então a viver a 8 Km de Luanda na estrada do Cacuaco. Aquilo eram já instalações fabris de grande emprego de operários, maioritáriamente negros. Eram empregados normais que marcavam o ponto como aqui. Excepto quando recebíam a semanada, era um sarilho... eu ouvia o meu pai aflito porque a balda era geral, apareciam alguns dias mais tarde a dizer que tinha morrido o tio ou a prima, que já tinham “matado” no mês anterior. Mas não me recordo que isso despoletasse perseguições futuras. O meu pai era uma pessoa de que sempre me hei-de orgulhar. Quando saía das aulas do Liceu Salvador Correia de Sá, fazia a descompressão espreitando a laboração da fábrica até que uma estridente sirene mandava toda aquela gente para os balneáreos – os melhores que vi na época - de onde saíam todos a cheirar àquele sabonete de glicerina americano horrível, o Lifeboy. Dia sim dia não, o Matias, que era um venerável chefe de turno, homem muito calmo, vinha à nossa residência que ficava no perímetro da fábrica e aprendia aí com o meu irmão as primeiras letras e os primeiros números. Ía fazendo os seus progressos descontando a dificuldade de aprendizagem que era natural. Um dia, em Janeiro de 1961, deixou de vir. E nunca mais veio.
Até que veio o fatídico Fevereiro de 1961. O Matias, porque queria outra coisa para a sua terra, parece que engrossou as fileiras de um movimento de libertação. Não acredito que o Matias tenha pegado numa catana para esventar meninos, mas não lhe perdoo, em nome do tratamento exemplar que lhe demos que tenha deixado os seus amigos fazê-lo. Alguns dias depois, para nossa protecção, porque estávamos isolados, montámos guarda noturna, potentes alofotes nas cercas, metralhadoras FBP no quarto, dormida por turnos e uma viatura com chaves na ignição e portões abertos. A vida assim era complicada, percebemos que ainda que boa gente, eles não queriam que lá ficássemos. Lembro-me de me despedir do meu cãozito a chorar porque ele percebeu logo de manhã que alguma coisa de trágico ía acontecer na vida dele.
Meu caro Afonso Sousa, o mundo não é a preto e branco. Os valores por que pauto a minha vida encontro-os na vertente social dos partidos de esquerda, mas não é qualquer cartilha que me fará ter leituras a preto e branco do que se passou em Àfrica. Claro que houve erros, desde logo porque Àfrica já existia antes dos Europeus lá chegarem. E é aqui que começa o equívoco.
Permita-me que discorde profundamente de si é que pela memória da integridade e ética dos meus pais não poderia deixar de lhe dizer que eles nunca foram os burgueses malteses que o Afonso aqui trouxe e que não há revolução nenhuma que não plante também a sua burguesia.
5 comentários:
só para deixar um alô, sou a filha do zé caetano :)
sabonete de glicerina americano horrível, o Lifeboy :)
o tempo passa... eu não me lembro de tal sabonete, claro, se calhar nem nunca houve em portugal, mas imagino-o.
e este texto é muito mais comovedor que a frase do sabonete, mas foi a que me agradou mais, por ser colorida. tudo o resto tem tons de castanho claro. imagino o sabonete vermelho... era?
Olha Bruxita também já foi há muito tempo, mas se aquilo não era glicerina era uma coisa parecida dessa cor, mas só o vi em Angola e aquilo cheirava a um desinfectante que mais parecia cliolina! Mas as crianças por vezes criam esteriotipos quando observam de determinados ângulos o que vêem.
sim, já verifiqei com o meu pai... confere tudo! era glicerina, e vermelhinha!!
Olá.Antes de mais, gostava de lhe deixar as minhas saudações pela sua frontalidade e pela veracidade das suas vivências.
Nasci em angola, segundo diz o meu B.I, e, apesar de nunca ter sentido o cheiro dessas paragens, sinto no sangue e na alma, a cor e os valores de quem por lá passou vinte anos...
Assim sendo,sou neta de colonos da Cela, que a essa terre dedicaram os vinte melhores anos de vida, bem como o resultado da venda dos poucos haveres que possuiam na metrópole...
A única coisa boa que me resta aos 32 anos é a herança de valores que os meus avós e os meus pais me transmitiram.
Vivo a vida por pautas que nem sempre são entendidas por estas paragens, nomeadamente por pessoas que se julgam detentoras de saberes e verdades que nem sempre correspondem à realidade.
O meu obrigada pelas suas palavras e pelos seus sentimentos!
Um dia, estando numa sessão de formação de um encontro profissional,ouvi um jovem que deve ter bem menos 7 ou 8 anos que eu...Esse jovem angolano dizia que quando teve que sair de Angola lhe tiraram o direito ao cheiro da goiabeira que tinha no sue quintal...Eu nesse dia chorei e disse « Que sorte a dele que ainda pode guardar na memória e no coração o cheiro dessa goiabeira...A mim, nem sequer me deixaram sentir o cheiros das goiabeiras dos meus avós e dos meus pais! Ele ainda tem memórias para guardar...e eu?!...que nem tenho direito a memórias da terra que me viu nascer?...
Desculpe estas palavras tão sentidas e muito obrigada pelas suas palavras.
Até sempre.
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