24 dezembro 2010

Memórias de Natal

Era um Natal carregado de humidade com uma névoa engrossada, quase chuva, mas de temperatura amena. Já tudo recolhera a suas casas e os retardatários para a ceia lá de casa tinham chegado. Procurava em vão uma última taberna onde pudesse comprar tabaco. No início da calçada estava parado um cachorrito preto, de pelo liso, meio molhado, que me interpelou sobre qualquer coisa inclinando a cabeça o espevitar das orelhas e um abanar do rabo. Dei-lhe apoio moral com um toque suave na cabeça que agradeceu, trocamos um olhar, e lá ficou como que á espera de alguém que lhe desse outra resposta que não aquela. O nevoeiro era agora chuva muito fina. A última tentativa que tinha para encontrar tabaco era nos cafés do centro do bairro, no jardim público. A rua era comprida e pouco iluminada por candeeiros antigos, iguais àqueles que se furtavam ao João Villaret, no tal filme já mil vezes visto. Das janelas das casas vinha uma claridade que ajudava a marcar alguns espaços iluminados na rua e as pedras borrifadas pela grande humidade reflectiam esses escassos pontos de luz. Já caminhava há algum tempo quando ao atravessar a rua olhei para trás e reparei na silhueta do cachorrito reflectida nas pedras de basalto preto gastas pelo tempo, já quase seixos redondos. Aquele pobre tinha-me seguido até ali durante todo aquele tempo. Aproximei-me dele. Das casas ouvia-se o som abafado do Twelve days of Christmas de Harry Belafonte. Desta vez não me interpelou, baixou a cabeça, julgo que num sinal de submissão. O pelo lustroso e limpo estava a ceder e começava a ficar encharcado. Voltei a fazer-lhe uma festa, agora com a palma da mão e disse-lhe mentalmente que não o podia levar. Parece ter confirmado no gesto aquilo que já sabia, e lá ficou parado.
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No regresso, sem o tabaco que não consegui comprar e já molhado, ia decidido a dar-lhe uma outra consoada, mas a última conversa parece ter sido para ele decisiva. Deve ter continuado a sua busca por um coração mais mole naquela noite.
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Não fosse a solidez das minhas convicções e perguntaria: Quem seria aquele cão que me pôs á prova e ainda hoje passados tantos anos me aparece sempre nas minhas memórias de Natal?
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Se ele voltar algum dia, juro que terá um Natal seco e farto.
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6 comentários:

Alexandre de Castro disse...

Um belo apontamento, caro Grazina.
Oxalá que nenhum membro da Associação dos Animais leia o texto. Esfolam-no vivo. Eles gostam mais dos cães do que das pessoas.

Graza disse...

Sim Alexandre, essa também é uma questão importante. Entendo que é melhor que as pessoas defendam uma causa qualquer do que vivam tranquilas no seu romanço, deixando tarefas importantes para os outros, contudo, esta da defesa dos animais é uma das que resvala com frequência para extremismos muito pouco aceitáveis, apesar do respeito e protecção que os animais devem merecer do homem.

Alexandre de Castro disse...

Concordo consigo. Os animais devem ser integralmente respeitados e defendidos e o seu abandono deliberado na via pública, depois de adoptados, deveria ser penalizado. Assim como deveria haver algum controlo sobre essa adopção, que poderia ser exercido pelas associações de animais, a título preventivo. Como sabe, no nosso quarteirão da avenida onde residimos, não há prédio onde não haja cães e em muitas casas não existem condições para abrigar esses animais, que assim são obrigados a viver em cativeiro.

Graza disse...

Subscrevo...

jad disse...

Boas Festas, Graza.

Se todos velássemos pelo outro, seja ele quem ou o que for e que de uma forma muito concentrada poderíamos dizer que é "todo aquele que não sou eu", não teria o Grazza possibilidade de fazer as fotografias do post anterior e viveríamos muito mais próximos do menino cujo nascimento comemoramos. Assim... infelizmente, irá continuar a poder fotografar as paredes-meias do capital da nossa vergonha.

Abraço, Graza.
Que os sonhos se cumpram!

Graza disse...

Obrigado Jad. Mas preferia que fossem só alguns a cumprir-se, para continuar a ter essa constante.

Abraço.